A malária humana é a antroponose de maior prevalência no planeta, isto é, nenhuma outra doença do homem, transmitida ao próprio homem através de alguns mosquitos do gênero Anopheles, atinge e mata um número tão grande de pessoas. Estima-se hoje que ocorram cerca de 300 a 500 milhões de casos anuais que causam cerca de 3 a 5 milhões de óbitos, sendo em sua maioria crianças com menos de 5 anos de idade. Ela está distribuída por 101 países, em 112 áreas endêmicas que abrigam e expõem ao risco de contraí-la cerca de 40% da população mundial na região tropical do planeta.
Os genes, que se encontram em todas as células dos seres vivos, são macromoléculas que contêm praticamente todas as informações sobre o funcionamento da célula onde se encontram.
A determinação do sequenciamento dos genomas do P. falciparum e do A. gambiae não deixa de ser antológica, histórica e memorável. O A. gambiae pela transmissão de um alto percentual de malária na África, onde ocorre cerca de 90% da malária do planeta, e o P. falciparum por ser responsável pela quase totalidade dos óbitos por malária.
Estes estudos e, principalmente seus desdobramentos, podem vir a dividir a história da malária no planeta em duas etapas distintas - a era anterior ao conhecimento do genoma dos elementos do ciclo evolutivo da doença e a era pós-conhecimento, assim como aconteceu com a descoberta dos medicamentos antimaláricos, influenciando de forma grandiosa na redução de sua letalidade em meados do século passado.
Essa determinação seqüencial poderá nos proporcionar conhecer quais e quantos são os genes desses dois seres, as funções que desempenham, além de oferecer a oportunidade de encontrar respostas para as numerosas perguntas de vários determinantes biológicos da doença que ainda estão parcialmente respondidos ou simplesmente ainda estão sem respostas.
O P. falciparum é um protozoário extremamente eficiente na transmissão, na instalação da doença e na aquisição de resistência aos medicamentos antimaláricos, além de não ter predileção em parasitar hemácias de qualquer idade, e se multiplicar como nenhum outro protozoário, o que contribui para o desenvolvimento das formas graves da doença ou até mesmo o óbito num período de tempo extremamente curto, deixando grave a situação clínica de pacientes que apresentam retardo de diagnóstico e tratamento.
A malária causada por este protozoário se instala transpondo barreiras de contenção imunológicas com eficiência e velocidade invejáveis aos outros plasmódios que também causam malária humana.
Tudo é impressionante neste protozoário unicelular, principalmente a sua multiplicação celular, extremamente veloz e numericamente grande para ocorrer dentro de pequenas e especializadas células como o hepatócito e a hemácia. A cada invasão celular são formados novos batalhões de protozoários que já nascem prontos e treinados para invadir novas células e formar novos batalhões. É uma guerra desigual, em que o homem perde a vida em poucos dias se nada for feito para detê-los. E em algumas dessas batalhas, esses exércitos ainda conseguem destruir ou inativar a principal arma humana existente, os medicamentos antimaláricos. Nossos soldados imunológicos, os anticorpos específicos, não conseguem conter exércitos numerosos e com a velocidade necessária. A doença se instala exatamente no momento em que esta batalha dá sinais de derrota. Toda a massa de protozoários formada no interior das células humanas tem suas proteínas fabricadas a partir de aminoácidos de origem humana, ou seja, o paiol de suprimentos dos protozoários, são as próprias células humanas que estão sempre disponíveis ao exército inimigo.
De cada esporozoíto (forma infectante para o homem) do P. falciparum injetado durante a picada do mosquito transmissor, esse se transforma, após o rompimento do esquizonte hepático, em cerca de 40 mil novas formas plasmodiais no fígado do paciente e essas, quando caem na corrente sangüínea, invadem rapidamente cerca de igual número de hemácias e ficam se multiplicando indefinidamente por cerca de 25 vezes ao final de cada volta do ciclo eritrocitário, ou de cada pico febril, se não houver diagnóstico e intervenção medicamentosa.
Na terceira volta do ciclo eritrocitário ou terceiro acesso febril, por exemplo, um único esporozoíto que penetrou pela picada do mosquito infectado geraria cerca de 625 milhões de novas formas plasmodiais, chamadas merozoítos sangüíneos que invadiriam igual número de hemácias e se multiplicariam por 25 vezes novamente, reinfestando cerca de 15,6 bilhões de novas hemácias.
Um dado real: no Rio de Janeiro, em 1998, um paciente que contraiu malária por P. falciparum em Angola, na África, permaneceu por desinformação, 8 dias com sintomas e sem tratamento. Em função deste pequeno retardo de diagnóstico, ele apresentou uma parasitemia com cerca de 1,2 milhões de hemácias parasitadas por milímetro cúbico de sangue no oitavo dia da fase sintomática quando foi diagnosticado, isto é, cerca de quase 25% de seu volume sangüíneo estava comprometido pelos plasmódios. Este paciente veio a desenvolver falência de vários órgãos como os rins, o fígado e os pulmões, atingiu o coma malárico com evolução para o quadro de malária cerebral, culminando com falência terapêutica, irreversibilidade dos quadros de falência de órgãos e o óbito.
A hemácia é uma célula vital para a sobrevivência de todas as células do organismo e que tem por principal função levar suprimento metabólico e oxigênio para todas as demais células do organismo. E é justamente essa célula que o Plasmodium utiliza com maior eficiência para sobreviver, se multiplicar e gerar os gametócitos (forma infectante para o mosquito) necessários para perpetuação da espécie, isso à custa da destruição de bilhões de hemácias a cada pico febril.
Não menos impressionante é a participação dos mosquitos transmissores de malária como componente do ciclo evolutivo da doença, que se multiplicam às centenas de cada vez, necessitam sempre de ingestão de sangue humano ou animal para realizar a maturação de seus ovos, sem o qual a postura não se dá. Seus ovos, larvas e pupas se preservam pelo mimetismo, ou seja, tomam a cor e características do ambiente onde vivem para camufladamente não serem localizados por seus predadores. A fêmea, responsável pela multiplicação, preservação da espécie e transmissão da doença é capaz, através de em uma única cópula, armazenar todos os espermatozóides de que necessita para autofecundar todos seus ovos durante a postura e com eficiência de quase 100%.
Os mosquitos machos vivem cerca de 2 semanas e as fêmeas cerca de 2 meses no meio ambiente. Os mosquitos-machos têm apenas a importante missão de produzir espermatozóides em tempo recorde, conseguir copular pouquíssimas vezes e deixá-los armazenados com a fêmea, que os utilizará somente se houver ingestão de sangue, fato que garantirá a perpetuação da espécie em mais essa etapa de luta pela sobrevivência. Desgosto à parte, por estar limitado a uma dieta pobre, ter que suportar os prazeres diferenciados da fêmea, não gozar intensamente da vida em sociedade, não comandar diretamente o processo de fecundação e morrer sem conhecer sua prole, a curtíssima sobrevida dos machos têm ainda razões desconhecidas ou será que poderá estar relacionada com a não ingestão de proteínas pela ausência de aparelho picador?
Assim como as tartarugas, nem todos os ovos fecundados se tornarão mosquitos adultos, em função da existência de predadores naturais em suas diversas fases evolutivas. Um único mosquito-fêmea pode conseguir se infectar mais de uma vez e com mais de uma espécie de Plasmodium ao mesmo tempo, o que a fará transmitir ao homem o que chamamos de malária mista, que é complexa e grave.
Em uma outra proeza, estes mosquitos ao picarem o homem doente, ingerem todas as formas plasmodiais existentes no sangue do paciente doente e somente os gametócitos masculinos e femininos dão continuidade às etapas de evolução no mosquito fêmea. Após a fecundação dos gametócitos que ocorre no estômago do mosquito, forma-se o oocineto, uma espécie de embrião que consegue perfurar e atravessar o estômago do mosquito, formando em sua parte externa os oocistos (pequenas vesículas) que amadurecerão e irão se romper liberando, na cavidade abdominal do mosquito, cerca de 6 à 8 mil esporozoítos por par de gametócitos ingeridos e fecundados.
O estômago de um mosquito infectado chega a apresentar dezenas de oocistos em sua parede externa. Após o rompimento destes, os esporozoítos se espalharão por todo o corpo do mosquito e posteriormente migrarão para suas glândulas salivares, quando estarão prontos para transmitir a doença em tantos quantos picarem, até ocorrer o esgotamento parasitário por injeção destes através da picada ou por morte dos protozoários na glândula salivar, que ocorre naturalmente em cerca de dois meses. Desde a ingestão de gametócitos pelos mosquitos até a formação de esporozoítos infectantes passam-se cerca de 10 a 12 dias, que corresponde ao período de incubação extrínseco do ciclo evolutivo da doença.
Os níveis de infectividade do mosquito se dão pela quantidade de esporozoítos presentes em sua glândula salivar. Quanto maior este número, maior sua infectividade, maior a carga parasitária injetada no momento da picada e maiores as chances da doença se instalar.
Desconhece-se, por exemplo, os mecanismos pelos quais os esporozoítos passam da parte externa para dentro das glândulas salivares do mosquito, que proporção consegue penetrar e que proporção fica retida e por quê? Nem todos os esporozoítos formados se tornam formas infectantes por não conseguirem chegar às glândulas salivares. Será por obediência ao princípio de seleção natural onde só os mais capazes conseguem penetrar e sobreviver? Ou será que é necessário que uma parcela de esporozoítos se sacrifiquem em ficar de fora da glândula ou em abrir caminhos para que outra parcela penetre deixando o mosquito em condições de cumprir a infecção no homem? Será que existem esporozoítos operários como existem as abelhas operárias? Qual o verdadeiro motivo deste comportamento entre estes protozoários?
Todas essas funções e realizações desses dois seres vivos são comandadas por complexos e ainda desconhecidos mecanismos.
A comparação gênica entre seres semelhantes certamente ajudará, por exemplo, a desvendar numerosos mistérios biológicos, mecanismos de eficiência em multiplicação celular e em sobrevivência de seres nas mais adversas condições de vida. Quem sabe os caminhos da longevidade humana não estão a poucos passos de serem descobertos? Quantos e quais genes tem a mesma função nos insetos dos gêneros Anopheles e Drosophila? Um transmite a malária humana o outro é uma inerte mosquinha de fruta.
Numerosas perguntas sobre o comportamento da doença, mecanismos de eficiência relacionados com a sobrevivência e multiplicação celular do Plasmodium, tanto no homem como no mosquito além da efetiva resposta humana que não consegue impedir a multiplicação celular do protozoário com a velocidade necessária, ainda estão sem respostas ou parcialmente respondidas.
Muitos questionamentos ainda carecem de esclarecimentos que ajudarão a dar novos rumos ao controle e quem sabe à erradicação da malária no planeta. E alguns destes abaixo relacionados, ainda estão por serem desvendados ou melhor esclarecidos.
• Que estruturas moleculares dos plasmódios participam ou são responsáveis pelos mecanismos de resistência às drogas antimaláricas?
• Que mecanismos e estruturas comandam a formação e a diferenciação de gametócitos e merozoítos sangüíneos nas hemácias parasitadas do homem doente?
• Por que somente 4 espécies de Plasmodium conseguem causar malária humana?
• Por que o P. falciparum se multiplica com uma velocidade incrivelmente maior que os outros plasmódios humanos e porque somente os esquizontes destes se fixam na parede interna dos vasos sangüíneos?
• Por que o Plasmodium cumpre tantas etapas de evolução no homem e se transforma a cada etapa em uma nova forma plasmodial para desenvolver a doença?
• Por que o P. ovale ficou restrito a uma região da África Oriental e não se espalhou pelo mundo como o vivax e o falciparum e o malariae?
• Por que o fígado humano foi eleito pelo Plasmodium para desenvolver a esquizogonia primária e as hemácias a esquizogonia secundária?
• Em que exato momento a malária deixa de ser infecção para se tornar doença?
• Por que das mais de 360 espécies de mosquitos do gênero Anopheles, apenas cerca de 54 destas conseguem se infectar com o Plasmodium e transmitir a malária?
• Por que somente a população geneticamente negra tem uma proteção extra contra o P. vivax?
• Que mecanismos fantásticos de proteção possuem os mosquitos do gênero Anopheles para suportar imensas cargas parasitárias estranhas ao seu organismo, terem seus estômagos e glândulas salivares perfuradas e cicatrizadas múltiplas vezes, realizar o esgotamento parasitário naturalmente, conseguirem se reinfectar e ainda sobreviver frente a um protozoário tão letal para o homem?
• Que proporção de esporozoítos é necessária ser injetada pelo mosquito para romper a barreira imunológica no homem e desenvolver a doença?
Com a palavra a ciência, a pesquisa, o conhecimento e a inteligência humana.
*Dr. Wanir José Barroso
é Farmacêutico-bioquímico, sanitarista, especialista em epidemiologia e controle de endemias pela Fiocruz/RJ.
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