Os Sete Pecados do Estatuto da Pessoa com Deficiência
*Geraldo Nogueira
É extremamente preocupante as discussões sobre o tema "Estatuto da Pessoa com Deficiência" no Congresso Nacional. A alucinante corrida pela autoria do famigerado estatuto coloca em risco a conquista de direitos alcançada pelo movimento das pessoas com deficiência. Essencialmente num ano eleitoral as disputas entre parlamentares por projetos de lei que lhes dêem visibilidade no cenário nacional é fundamental como instrumento de campanha política. Se por um lado é bom, por possibilitar o exercício da criatividade, por outro se torna perigoso, já que nem sempre a criatividade humana trabalha em prol do bem comum.
A idéia de se ter um estatuto é ilegítima, pois não nasceu dos anseios do movimento organizado das pessoas com deficiência e sim, creio, da boa intenção de um parlamentar, fundada no argumento de que ter todos os direitos reunidos em um único instrumento jurídico facilitará a vida das pessoas. Assim, o cidadão com deficiência não perderia seus direitos, já que concentrá-los facilita conhecê-los.
O estatuto seria uma espécie de "bíblia", contendo todos os direitos dirigidos para o segmento. Mas como a própria Bíblia Sagrada, formada por textos de conteúdo moral existentes há mais de dois mil anos ainda hoje não é seguida à risca, fica a dúvida: O estatuto, ainda que de conteúdo legal e de responsabilidade social, será cumprido?
A palavra estatuto, entendida no sentido do Direito, refere-se ao conjunto de regras e princípios jurídicos que em atenção ao estado da pessoa ou de determinado segmento social, disciplina as relações jurídicas incidentes sobre essas pessoas ou segmento. Em outras palavras poderíamos dizer que o estatuto da pessoa com deficiência existe, visto que já temos um conjunto de regras e princípios jurídicos em relação a pessoa com deficiência. Aliás um conjunto de regras em constante construção, não estático, dinâmico e dialético. Ora, se ele já está entre nós, então o que se quer criar?
Como nos posicionamos contrário a existência desse estatuto, teceremos abaixo alguns argumentos que nos levam a crer no seu fracasso.
A concatenação das leis referentes a pessoa com deficiência para a qual estão rotulando de estatuto nos oferece somente uma vantagem; a de facilitar a consulta dos direitos da pessoa com deficiência. Entretanto devemos levar em consideração que havendo êxito na edição do estatuto, cometer-se-á os seguintes pecados:
1 - No momento existem várias versões do estatuto, todas com problemas de terminologias inadequadas, interpretação equivocada de direitos, conceitos pouco abrangentes ou impróprios e muitos pais e padrinhos loucos para batizar logo suas crias;
2 - A confecção de um estatuto da pessoa com deficiência soa como excludente, pois separa seus direitos das leis que tratam da sociedade como um todo, como se as pessoas com deficiência vivessem numa espécie de sociedade separada ou própria;
3 - A questão da pessoa com deficiência em termos de abrangência social não pode ser comparada com outros segmentos sociais, como por exemplo idosos ou crianças e adolescentes. A deficiência é uma condição humana que pode permear as demais diferenças do ser humano. Assim, quando a lei tratar de questões ligadas a idosos, jovens, etnia, religião, gênero ou orientação sexual, não deverá separar as questões específicas destes segmentos que convirjam com a realidade da pessoa com deficiência;
4 - No Brasil temos dois movimentos organizados em prol dos direitos de pessoas com deficiência. Um denominado movimento de luta por direitos, formado pelas associações e intituições com perfil de reinvindicação política e social e, o outro, o movimento de vida independente, formado pelos CVIs e instituições afins que trabalham o fortalecimento individual da pessoa com deficiência e atua na esfera de defesa dos direitos humanos. Quanto mais forte e ampla a área de atuação destes movimentos, maior será a inclusão social e a exigência por reconhecimento de direitos. Isto torna a criação de direitos (leis), para o segmento, extremamente dinâmica, o que contrapõe a idéia de um estatuto como instrumento jurídico estático e de difícil alteração;
5 - Se por um lado concatenar as leis que tratam dos direitos das pessoas com deficiência facilitará a consulta pelos próprios beneficiários, por outro também facilitará aos grupos desinteressados em atender direitos sociais a vigiar a progressão do direito, concentrando "fogo", através de lobby, para convencer parlamentares a defender e votar por determinado ponto de vista que lhes interesse;
6 - Existe o perigo real de que a partir da promulgação do estatuto da pessoa com deficiência, nenhuma lei nova tenha trânsito no Congresso Nacional, pois quando mais a frente surgir uma idéia que seja boa para o segmento, os lobistas dirão que o assunto só poderá ser tratado na revisão do estatuto. Isto funcionará como um sistema de freios e contrapesos a todas reivindicações do movimento de luta por direitos das pessoas com deficiência;
7 - No passado já se precisou muito desse instrumento jurídico. Numa época em que o segmento de pessoas com deficiência era tratado como minoria inexpressiva. Atualmente as pessoas com deficiência somam 14,5% da população brasileira, estão organizadas em dois movimentos que se complementam e fortalecem e têm uma das legislações mais inclusiva das Américas. Se no passado tivéssemos feito um estatuto, talvez hoje estivéssemos discutindo como eliminá-lo para inserir nossos direitos nas leis que regem a sociedade como um todo. Estaríamos pleiteando a condição de cidadãos incluídos numa sociedade que não necessita separar para incluir.
*Geraldo Nogueira é Advogado especialista em direitos das pessoas com deficiência e
Vice-Presidente da Rehabilitation International para América Latina e Consultor do rampadeacesso.com