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Um Caminho de Pedras Coloridas


*Geraldo Nogueira

Recentemente recebi a versão de um Projeto de Lei do Senado - PLS 06/2003, assinado pelo Senador Paulo Paim, intitulado como Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência. Fiquei bastante surpreso e preocupado com a dimensão que as questões que envolvem as pessoas com deficiência vem tomando em nosso país. Surpreso porque como militante, estamos acostumados a ver o envolvimento e a participação de pessoas e instituições que atuam na área, nos dando a certeza de que, no mínimo, o trem se manterá nos trilhos. Preocupado porque, quando a coisa toma maior proporção, maior também é o descontrole e risco de pegar um caminho errado que nos ponha novamente no ponto de partida.

No caso do PSL 06/03, que institui o "Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência", não temos notícias do envolvimento de pessoas ou instituições que poderiam subsidiar aquele Projeto com informações que contemplariam as atuais reivindicações quanto à mudança de paradigmas e de ações político-sociais, para uma efetiva inclusão social. Tanto que, como Diretor Jurídico do CVI-Brasil, Ong que apóia e defende os direitos humanos das pessoas com deficiência, tivemos a oportunidade de participar de um encontro, ocorrido recentemente em Maringá-PR, e ao perguntar sobre PSL 06/03, percebemos que para a maioria, o assunto é novidade. Nem mesmo a Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - CORDE, órgão federal de assessoria da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, tem participado efetivamente da elaboração do referido Estatuto.

O Projeto é de importância fundamental, tanto do o ponto de vista social quanto jurídico e influenciará diretamente a vida atual e futura das pessoas com deficiência. Portanto, o envolvimento participativo de pessoas com deficiência é indispensável, sendo inadmissível a submissão do segmento, a um novo regime jurídico sem que tenha uma profunda e efetiva participação.

Da forma em que se encontra, o Projeto contém imprecisões terminológicas e conceituais, merecendo uma revisão neste sentido. Seu conteúdo, tanto do ponto de vista sócio-educacional, cultural, político, como jurídico, está carregado de termos inadequados e arcaicos que não traduzem as novas conceituações, reinvidicações, necessidades e expectativas de mudanças concretas dos direitos sociais das pessoas com deficiência de nosso país. Não obstante ao importante conteúdo da matéria e a intenção de reunir a legislação vigente para melhor compreensão social, os redatores pecam em alguns pontos do texto, deixando escapulir o "preconceito" que faz parte da nossa cultura.

Durante a infância recebemos uma enorme carga de preconceito em relação às pessoas com deficiência, idosas, negras, etc... Quando nos conscientizamos destas supertições que, no íntimo nos dominam, tentamos mudar, nos esforçamos por um pensar e agir diferentes, mas aqui ou acolá, nos deslizamos, ficamos desapercebidos das falhas e dos malogros; então revelamos o que está intrínseco, escondido nos mais recôndito dos aprendizados culturais.

Parece ser o que ocorreu com o Estatuto que ora comentamos. Em vários pontos os autores escorregam no linguajar, nos fazendo experimentar uma sensação de repulsa, de incômodo. A título de exemplo comentaremos o art. 1º do Estatuto, em seguida transcrito:

Art. 1º. Esta lei institui o Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência, destinado a assegurar a integração social e o pleno exercício dos direitos individuais e coletivos das pessoas acometidas por limitações físico-motora, mental, visual, auditiva ou múltiplas, que as torne hipossuficientes para a regular inserção social.

O termo "Pessoas Portadoras de Deficiência" não vem sendo usado, uma vez que a palavra "portadora" sugere uma agregação à pessoa. Assim a deficiência passa a ser um detalhe da pessoa. Esta terminologia foi amplamente utilizada no período pós Constituição Federal de 1988 e, por uma questão de menor esforço, foi reduzida para "portadores de deficiência", tendo sido amplamente incorporada nas Constituições e leis federais, estaduais e municipais. Acabando por ser adotada também nas políticas públicas e até em nomes de conselhos, órgãos e instituições que atuam na área.

O fato é que, na última década, o termo "pessoa com deficiência", passou a ser o preferido e vem, cada vez mais, incorporando documentos nacionais e internacionais, sendo atualmente a nomenclatura de vanguarda que agrega valores como o uso do poder pessoal para fazer escolhas, tomar decisões e assumir o controle da sua própria vida e a responsabilidade de contribuir com seus talentos para que tenhamos uma sociedade melhor, tanto para pessoas, com ou sem deficiência.

Como se pode ver, o termo mais adequado é "Pessoa com Deficiência" e não, "Pessoas Portadoras de Deficiência". Encontramos a expressão "integração social", que também não se usa mais na área das pessoas com deficiência. Para o segmento, o termo integração social tem um histórico doloroso, de sacrifícios infundados e que permeiam a discriminação. O termo significou a fase histórica em que as instituições de reabilitação se propunham a tornar a pessoa o mais "normal" possível, para que pudesse "integrar" o grande grupo social. Hoje trabalham com a perspectiva da inclusão, onde reconhecem que a sociedade é formada por diferenças, cuja normalidade se faz presente, justamente na diversidade que, ao se complementar, busca equilíbrio e perfeição. Assim, neste trecho, o termo mais adequado seria inclusão social e não, integração social.

A expressão, "acometidas", nos parece um tanto quanto agressiva, dando a idéia de pessoas atacadas por grande e perigoso mal. Já o termo "limitações" é inoportuno, pois acreditamos que o utilizaram no sentido de limites. Os limites são externos, independem das pessoas, estão muito mais presentes nas barreiras sociais e atitudinais do que nos indivíduos. Limitações são processos internos, que estão na esfera das emoções, portanto impossíveis de serem impostos por uma deficiência. Assim, tanto uma pessoa, com ou sem deficiência, poderá ter limitações impostas por seu estado emocional e não por situações específicas de deficiência física, mental ou sensorial. Nos parece totalmente desnecessário e dispensável a utilização de ambos os termos no artigo primeiro do Estatuto. A palavra "hipossuficientes" é uma expressão que cheira a discriminação. É inadequado dizer que pessoas com deficiência não são auto-suficientes para uma regular inserção social. O melhor é tratar de equiparação de oportunidades e de igualdade social. Como sugestão, propomos a seguinte redação para o art. 1º do Estatuto:

Art. 1º. Esta lei institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência, destinado a promover inclusão social e assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos com deficiência física, mental, visual, auditiva ou múltiplas.

Por fim, me preocupa a idéia de um estatuto, pois soa como separação, exclusão, um caminho de pedras coloridas que logo perderá a cor. Basta observar o exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, uma norma avançada do ponto de vista social e jurídico, mas ineficaz do ponto de vista prático. Se uma lei "não pega" temos algumas conseqüências, mas se o estatuto "não pegar", as conseqüências serão muito mais graves.

*Geraldo Nogueira é Advogado; Diretor Jurídico da Ong. CVI-Brasil e Seg. Vice-Presidente da Rehabilitation International para América Latina.


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